quinta-feira, 22 de março de 2007

Reconhecimento e autoridade
O interesse de Bernardo de Claraval foi decisivo para que o Scivias recebesse irrestrita aprovação. Em 1147 o Papa Eugênio III, também cisterciense e antigo discípulo de Bernardo, convocou um sínodo a ser realizado em Trier, no qual o tema principal seria o problema da ingerência da nobreza em assuntos da Igreja, especialmente na indicação de abades e bispos.


Preocupações com as heresias e a defesa da ortodoxia também estavam entre as grandes questões do momento. Nesta oportunidade, aproveitando a presença da mais alta autoridade eclesiástica em terras germânicas, o arcebispo de Mainz, certamente interessado em divulgar seu arcebispado, trata de anunciar a Eugenio III a obra de Hildegard, ainda em andamento. O Papa envia, então, uma comissão a Disibodenberg com o objetivo de avaliar o trabalho da monja, recebendo em seguida uma parte já escrita do Scivias, que aprova de imediato (FLANAGAN, 1998: 5).

Bernardo de Claraval, que é uma das figuras de maior destaque no sínodo, já tinha tomado conhecimento, anteriormente, do trabalho que Hildegard vinha desenvolvendo, através de uma carta que ela própria lhe havia enviado. Sua opinião favorável, de franco apoio, foi fundamental para a aprovação de Eugênio III (MAÇANEIRO, 2000: 139).

Para que se entenda melhor todo o contexto, é importante lembrar que Bernardo lidera o movimento que pretende não apenas diminuir a influência da nobreza nos assuntos da Igreja mas também recuperar a austeridade que os cistercienses consideram ameaçada pelo estilo de vida dos monges de Cluny. Além disto, há vários anos, o próprio Bernardo havia sido também um ferrenho opositor aos ensinamentos de Abelardo, a quem condenou em nome da ortodoxia religiosa (BERLIOZ, 1994: 50).

Abelardo, que já havia falecido em 1142, antes portanto da convocação do sínodo, mas cujos escritos continuavam circulando e sendo lidos, foi um professor brilhante e carismático que procurou adequar as Escrituras ao pensamento racional e recorreu à lógica aristotélica enquanto instrumento de explicação de dogmas como o da Santíssima Trindade (VERGER, 1994: 62). Seus ensinamentos, porém, estavam muito afastados da ortodoxia defendida não apenas por Bernardo mas pelos cistercienses em geral. Entre estes dois enfoques situava-se o debate religioso da época e, em meados do século XII. a posição oficial da Igreja pendia para o lado mais afirmativo e menos predisposto a questionar os ensinamentos estabelecidos.

As autoridades eclesiásticas procuravam evitar a contestação, já que havia também o fator de risco representado por movimentos considerados heréticos. Especialmente temida era a heresia dos cátaros, muito ativa e em expansão, pregando a pureza absoluta e uma visão maniqueísta do mundo, que atraía os descontentes num momento em que muitos clérigos eram acusados de desvios morais (BAIRD e EHRMAN, "Introdução". In: HILDEGARD, Letters: 13).

Em nosso entender, dentro deste quadro é possível encontrar os motivos que explicam como Bernardo de Claraval acolheu de forma tão positiva os relatos das visões de Hildegard. Ao abraçar o universo visionário de uma monja até então não muito conhecida, ele obtinha material que reforçava tanto a sua desaprovação aos luxos dos monges de Cluny quanto a autoridade de suas críticas na condenação de ensinamentos como os de Abelardo.

O conteúdo do maravilhoso inerente à própria idéia de visões era uma alternativa ao uso sistemático da dialética e à busca de explicações racionais que marcaram o percurso intelectual abelardiano. A inegável riqueza das descrições contidas no Scivias poderia ter aberto espaço para interpretações que fugissem à ortodoxia religiosa. No entanto, como as discussões no decorrer de todo o século XII se encontravam polarizadas entre os que defendiam a possibilidade de exame das questões da fé à luz da razão e aqueles para os quais a verdade revelada não necessitava de explicações intelectuais, teria sido impossível uma leitura do material visionário de Hildegard com maior liberdade sem que sua autora corresse o risco de ser classificada como herética. A ela, não restava outra opção a não ser a de se afirmar exclusivamente como um veículo para as revelações divinas.

Com este ponto de partida, foi-lhe possível, passo a passo, estabelecer sua própria autoridade em outros aspectos, como conselheira, terapeuta, compositora e fundadora de dois mosteiros femininos. Recebida a aprovação do Papa Eugênio III e o amplo apoio de Bernardo, Hildegard passou a assumir maior visibilidade também na sua própria comunidade.

Na medida em que insistia em seus escritos que não era uma pessoa culta e que seus conhecimentos eram rudimentares (NEWMAN, 1998: 6-7), o que relatava era lido como palavras divinas, que não tinham sido elaboradas e nem passado por sua interpretação. A humildade constantemente afirmada, porém, contrastava com suas atitudes e com a maneira decidida e independente como dirigia as companheiras no mosteiro. Desde a morte de sua tutora Jutta, em 1136, Hildegard tornara-se ela própria responsável pela parte feminina do Mosteiro de São Disibod. Com o reconhecimento crescente de seus escritos e de suas qualidades de visionária, a subordinação ao mosteiro principal, masculino já não lhe favorecia.

Não sem conflitos com os monges, Hildegard funda inicialmente o Convento de São Rupert, próximo a Bingen, onde se instala a partir de 1152 (ENGEN. In: NEWMAN, 1998: 30-51) e onde, como abadessa, passa a ter maior liberdade. Mais adiante funda uma segunda casa, em Eibingen pois à medida em que seu nome torna-se conhecido, já então como Hildegard de Bingen, cresce o número de nobres que desejam colocar as filhas sob os cuidados de uma figura de tanto prestígio.

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