quinta-feira, 22 de março de 2007

A obra visionária
Hildegard afirma que, ainda quando criança, costumava ver o que não estava evidente para mais ninguém (MEWS in NEWMAN, 1998: 53). Ela mesma faz, portanto, remontar sua característica de visionária à infância, muito embora só tenha iniciado os relatos escritos na idade madura. Alguns estudos atribuem suas visões a uma patologia específica denominada migraine. Popularmente associada a dores de cabeça crônicas, as crises de migraine podem, no entanto, manifestar-se com outras características, entre elas o surgimento de raios de luz de diversas cores.


A historiadora Sabina Flanagan examina com muito detalhe as questões relativas às origens das visões de Hildegard, apontando para as alterações dos níveis de consciência, as alucinações e o aparecimento de auras (FLANAGAN, 1998: 191-193). Acreditamos, no entanto, que para a análise histórica, mais essencial do que o debate sobre as origens das visões de Hildegard, é o entendimento de como foi possível que uma mulher, no século XII, época marcadamente dominada pelo saber masculino, chegasse a alcançar tamanho destaque e reconhecimento.

O Scivias, abreviatura de Scito vias Domini foi seu primeiro livro, no qual, auxiliada pelo monge Volmar, registrou com grande riqueza de detalhes vinte e seis visões. Foi também o ponto de partida para tornar Hildegard não apenas conhecida mas sobretudo aceita como autoridade nos mais variados assuntos tanto religiosos quanto relativos ao comportamento humano e à natureza.

Mais do que uma simples descrição do material visionário, o Scivias compreende também explicações detalhadas, que são dadas com o objetivo de tornar claro o sentido das imagens. O processo é o seguinte: Hildegard apresenta, em toda sua exuberância, uma determinada visão e, em seguida, desvenda seu significado mas deixando sempre muito claro que não o faz por seu próprio entendimento e sim reproduzindo palavras divinas. Há uma constante passagem da representação iconográfica à fase discursiva e assim fecha-se a explicação, o que não impede mas dificulta a possibilidade de um grande espaço livre para a interpretação do leitor (HILDEGARD, Scivias, 1978).

O Scivias compreende três partes, a primeira relatando seis visões, a segunda, sete visões e a terceira, treze. (HILDEGARD, Scivias, 1978). Como bem explica Marcial Maçaneiro, “o livro segue a manifestação das visões. Não tem o formato de um trabalho teológico, mas se costura com alguns ‘fios teologais’ que lhe conferem textura. Os fios são: criação, salvação, Verbo, Igreja e humanidade. O estilo literário é profético” (MAÇANEIRO, 2000: 139).

O maravilhoso medieval é desvendado na escrita de Hildegard, tendo sempre presente o ser humano e a relação Cosmos-Humanidade-Natureza, o que fornece a possibilidade de pensar o todo sem deixar de considerar as suas partes. As visões de Hildegard perpassam grande parte de seus trabalhos e a elas a monja faz constantes referências. Mas, de caráter explicitamente visionário, além do Scivias, há o Liber Vitae Meritorum, escrito entre 1158 e 1163, e o Liber Divinorum Operum Simplicis Hominis, escrito entre 1163 e 1173 (HOZESKI, “Introdução”. In: HILDEGARD, The Book of the Rewards of Life, 1994: xiii). Em conjunto, estas três obras compõem um quadro muito denso, que abrange desde um elaborado enfoque de temas cosmológicos, até uma detalhada análise de vícios e virtudes, sob um refinado prisma psicológico.

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