Afirmação e independência
Hildegard de Bingen foi não apenas autorizada a divulgar todo um complexo quadro visionário, mas também a pregar em público na sua região e em diversas outras cidades, o que era espantoso para uma mulher, em qualquer fase da história da Igreja, e especialmente na Idade Média. Com o crescimento de sua fama, aumentaram também as consultas que lhe eram feitas por carta (HILDEGARD, Letters, 1994).
A correspondência que Hildegard trocou, tanto com grandes personalidades de sua época quanto com desconhecidos, foi muito vasta, evidenciando seu papel de conselheira para diversos assuntos. Tendo sido reconhecida pelo próprio Papa Eugênio III como visionária, passou a ser considerada, então, capaz de responder a questões sobre os males do espírito e do corpo e também sobre temas ligados à política da época.
Além disto, ela mesma tomou a iniciativa, quando julgou necessário, de dirigir-se a diversas pessoas para fazer admoestações sobre comportamentos ou para dar apoio em determinadas circunstâncias (HILDEGARD, Letters, 1994, principalmente cartas escritas a bispos e abades). Hildegard era, implicitamente, aceita como profetisa em decorrência de suas características de visionária. Diversas cartas solicitavam revelações divinas das quais ela pudesse ser portadora (HILDEGARD, Letters, 1994: carta 29: 93; carta 48: 120; carta 87r/b: 199).
A questão sobre a qual podemos continuar refletindo e que perpassa o estudo de toda a sua obra é: porque Hildegard de Bingen foi autorizada não apenas a divulgar um rico e complexo quadro de visões, mas também a pregar em público e a difundir comentários proféticos, desfrutando sempre de um considerável grau de liberdade?
Seria enganoso, no entanto, pensar que tudo ocorreu sem qualquer contestação e que a monja germânica foi uma figura passiva e discreta, que recebeu o apoio direto das autoridades eclesiásticas, enquanto se dedicava apenas a escrever. Se, no início, como já mostramos, o apoio de Bernardo de Claraval se constituiu em um elemento essencial para que as visões relatadas no Scivias fossem reconhecidas pela Igreja, em seguida Hildegard afirmou-se tanto por sua própria capacidade de liderança de um grupo de monjas quanto pela qualidade de sua obra e pela dedicação e profundidade com as quais respondia sempre as consultas que lhe chegavam.
Por outro lado, surgiram também questionamentos e críticas. O abade Kuno, do Mosteiro de São Disibod, ficou bastante descontente com a idéia de Hildegard, de fundar uma nova casa, privando-o de desfrutar da fama que sem dúvida lhe trazia a presença da visionária (Engen. In: NEWMAN, 1998: 37). Ela no entanto manteve-se firme e mudou-se com suas pupilas para São Rupert, onde consolidou sua liderança.
Entre as críticas que lhe foram feitas, justamente uma delas é com relação às suas funções de abadessa e à liberdade da qual desfrutava. Em uma carta, Tengswich, superiora de Adernach, pergunta sobre as irregularidades que estariam ocorrendo entre as monjas de Hildegard, que participavam das cerimônias religiosas com os cabelos soltos, usando como parte do vestuário longos véus de seda caindo até o chão e adornadas de anéis de ouro, demonstrando, assim, pouca modéstia e preocupações com a aparência (HILDEGARD, Letters, 1994: carta 52: 127-128).
Hildegard responde com segurança e sem a menor intimidação. Explica que as recomendações de modéstia no penteado e no vestuário só se aplicam às mulheres casadas, que devem aparecer muito discretas na frente de outros homens. Já as virgens – e principalmente as monjas – não são obrigadas a cobrir seus cabelos e podem usar sem restrições seus longos e belos trajes brancos (HILDEGARD, Letters, 1994: carta 52r: 128-129). Em última análise, o que Hildegard pretende é defender os rituais próprios de seu mosteiro e, em nosso entender, sobretudo demarcar com muita clareza seu espaço, conservando sua liberdade.
Fazem parte dos cuidados da abadessa com suas monjas e com a qualidade e o refinamento dos ofícios, suas composições musicais (HILDEGARD, Symphonia Armonie Celestium Revelationum, 1998). Como assinala Margot Fassler, em todo o século XII não há nenhum outro corpus tão grande e tão diversificado de composições pertencente a um só autor, facilmente identificável, como é o caso das que foram escritas por Hildegard de Bingen (FASSLER. In: NEWMAN, 1998: 150).
O que surpreende, portanto, é não só a variedade da sua obra mas a profundidade de seus escritos, a qualidade de todos os seus trabalhos, desde os relatos das visões até a música, a poesia, a correspondência em geral e seus compêndios de medicina.
Nos livros Physica e Causae et Curae, Hildegard se debruça com olhar inquiridor sobre a natureza, pesquisando o uso terapêutico de plantas, aprofundando a tradição beneditina de manter farmácias e de dar assistência aos enfermos, nos mosteiros (GLAZE. In: NEWMAN, 1998: 125-148). O interesse da abadessa pela cura de enfermidades reflete sua própria visão do homem no mundo, integrado com a natureza.
Visionária, escritora, compositora, terapeuta exercendo o poder da cura através das ervas mas também de dons espirituais, como mística, pregando em domínios até então exclusivamente masculinos, não correria Hildegard o risco de uma condenação? Sua crítica firme às heresias, principalmente à dos cátaros, teria sido suficiente para afastar de todo qualquer possibilidade de acusação que recaísse sobre si mesma?
A verdade é que Hildegard moveu-se sempre com uma grande habilidade, e também com uma inteligência e sutileza extraordinárias. Soube manter o apoio que havia granjeado entre as autoridades da Igreja, mesmo depois do desaparecimento de seus protetores Bernardo de Claraval e Eugenio III, sem que para isto tivesse que abrir mão de suas convicções ou de suas severas críticas aos comportamentos de diversos representantes da Igreja (HILDEGARD, Letters, 1994, carta 74r: 159). A abadessa germânica viveu oitenta e um anos, tendo falecido em setembro de 1179. Manteve-se ativa até avançada idade, pois em torno de 1170 ainda realizou algumas viagens para pregar (PERNOUD, 1996: 118). Suas diversificadas atividades foram, assim, muito além do que seriam os encargos de uma religiosa visionária medieval. Uma análise atenta de tudo o que deixou escrito nos remete a importantes considerações tanto de ordem política quanto psicológica.
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