sábado, 24 de fevereiro de 2007



A "Terceira Margem do Rio" é narrado em 1ª pessoa, por um personagem que conta um episódio marcante para ele e para a sua família. O autor não dá nomes aos personagens da narrativa, que são chamados simplesmente pelo filho-narrador de "nosso pai", "nossa mãe", "minha irmã" e "meu irmão". A idéia e a concepção da transcendência está em todos os lugares, nos menores detalhes.

O pai é descrito pelo narrador como um "homem cumpridor, ordeiro, positivo desde menino", nem "mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos". Somente quieto, muito quieto. Até que, de repente, ele manda fazer uma canoa, especial, forte e de preparado material, "para durar uns 20 ou 30 anos na água". Enquanto a canoa era confeccionada, o pai "nada não dizia". A esposa, quem comandava a casa e a família, passou a se preocupar com as atitudes do marido, apreensiva de antemão pelo que ainda não tinha acontecido, mas que já parecia decidido.

Moravam perto do rio, "obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira". E quando a canoa ficou pronta, "sem alegria nem cuidado, nosso pai encalçou o chapéu e decidiu um adeus para a gente". Sem fazer recomendações, sem proferir discursos ou dar conselhos, o homem não pegou sequer roupas ou mantimentos.

Momento em que "nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou - ‘cê vai, ocê fique, você nunca volte!’". O texto é repleto de oralidade e as expressões foram construídas de modo a formar uma cadência musical muito marcante, que é outra característica da obra de Guimarães Rosa.

O pai, com um aceno, quis saber se o filho-narrador iria com ele, mas terminou por desistir de levá-lo ao notar o medo do rapaz. Essa foi a primeira oportunidade perdida. Desamarrada a canoa, o homem remou para a imensidão do rio e da águas, "ele não tinha ido a nenhuma parte", "só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais".

É a estória de um pai que, sem motivo aparente, abandona tudo e a todos e decide viver em uma canoa é narrada pelo filho com notável perplexidade. Teria adoecido? Ficou louco? Ninguém soube explicar. Muita tinta já foi gasta para interpretar esse conto e seus significados. O certo é que houve um abandono e uma ruptura dos padrões de normalidade, das regras e normas vigentes, em nome de uma missão. A viagem marca a categoria do diferente, que chocou a sociedade local, família, amigos e conhecidos. Certamente, o despojamento da matéria parece demasiado incompreensível para os que não fizeram a travessia.
O narrador relata um verdadeiro arquétipo de um eremita. O homem no processo de animalização, de volta ao essencial, às suas origens. A solidão em franca comunicação com a liberdade.

O pai resistiu a todas as formas de aproximação ou abordagem: família, parentes, polícia, padre, imprensa, reza. Após sua partida, ninguém consegue ultrapassar as margens do rio. Apesar de o genitor encontrar-se em uma posição de possível alcance, ninguém foi capaz de chegar até ele e esse fato é muito representativo. Para se chegar até ele era necessário fazer a travessia.
Um dos elementos mais recorrentes na ficção roseana, a travessia é tida como verdadeira alegoria do viver, tema também explorado no magnífico "Grande Sertão: Veredas", num processo de despertar e de autoconhecimento A travessia traz, portanto, toda a simbologia da existência humana.

A sede de transcendência do pai encontra nas águas do rio sua máxima representação. O ato de habitar o rio representa o ato de viver o imprevisto, de conhecer o desconhecido, de criar outra margem. Nesse conto misterioso de Rosa o mistério não é para ser revelado, servindo mais para gerar outros mistérios. Após o impacto inicial, a vida de todos começa, aos poucos, a voltar ao normal. Com o tempo, o irmão, a irmã e a mãe se mudam e apenas o filho-narrador permanece, como que magnetizado pela sina de seu pai, tentando inutilmente compreender algo que estava muito acima de suas forças.

O filho depositava mantimentos e algumas roupas num local determinado, a beira do rio, "a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho", mas o pai quase não tocava nessas coisas, pegando um "quase nada" para viver. A escolha pela terceira margem sugere a idéia de superação, de transcendência, de resolução de um conflito. O espaço escolhido pelo pai denota não mais o uno e o absoluto ou a bipolaridade, mas o momento terceiro, em que as contradições e os opostos estão reunidos. É o apogeu do processo dialético, onde o indivíduo parte da margem para a terceira margem.

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