Fica claro na narrativa o contraste entre o modo de viver do viajante e o senso comum da coletividade. O próprio narrador não era capaz de entender tamanha força: "o severo que era, de não entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiro, calor, sereno (...) só com o chapéu na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos". O homem não pisou mais em chão nem em capim.
Percebendo que ele próprio já estava envelhecendo, com os cabelos bem grisalhos, o filho-narrador teve então uma revelação: decidiu propor ao pai, já muito idoso, que houvesse uma troca de lugares entre os dois. Foi até a beira do rio e acenou com um lenço, até que o homem apareceu ao longe, o vulto. Instante em que grita: "pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... agora, o senhor vem, não carece mais... o senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas as vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!".
Seu pai escutou e, de onde estava, aquiesceu, pois manejou lentamente o remo na água e vinha na direção de seu filho que, por sua vez, demonstrou nova fraqueza e fugiu, em pânico, sem coragem para assumir o posto do pai. O autor estampa suas dicotomias: medo e coragem, conservadorismo e ousadia.
Ao se negar o desafio, o narrador condena-se a uma existência rasteira, quotidiana, medíocre. Termina por lamentar a sua condição, evidenciando o profundo contraste entre ele e seu pai, exemplo de vitalidade e de força. Preferiu ficar em seu porto seguro, no comum, nos padrões. Nem todos chegam à terceira margem.
Após esse acontecimento o pai nunca mais apareceu e o narrador confessa: "sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento?" O universo metafísico, essencial, profundo, além da rasa existência terrena era, para ele, algo inatingível.
Assumindo a pequenez, o filho pede que, na sua morte, seu corpo seja colocado numa canoa para vagar rio afora: "no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio a dentro - o rio". A postura solitária do pai serve para evidenciar que certas experiências são inenarráveis, não compartilháveis, exigindo a solidão. Assim como as grandes travessias.
O rio, metáfora universal da vida e do seu curso, é sempre associado à noção de travessia, de heróica dominação, pela força ou pela sabedoria e resignação. A vida é uma travessia arriscada e fascinante, que amedronta. "Viver é muito perigoso", disse Riobaldo. "Carece de ter coragem", respondeu-lhe Diadorim.
Francisco Miguel Spínola é advogado em São Paulo fmcamara@ig.com.br
Um comentário:
Excelente resenha, livre, e que envolve muito bem o leitor com o relato da obra. Não há como não se transportar para o cenário do livro, imaginar o viajante remando eternamente sem destino trajando um chapéu de palha na cabeça. E notar que é impossível compreender a liberdade sem vivê-la.
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