sábado, 24 de fevereiro de 2007

O Transcendente Guimarães Rosa


por Francisco Miguel Spínola
O conto "A Terceira Margem do Rio", de Guimarães Rosa, faz parte do livro "Primeiras Estórias", publicado originalmente em 1962. Obra repleta de textos sublimes, tais como "Famigerado", "Nenhum, Nenhuma", "O Espelho", "As Margens da Alegria", "Os Cimos" entre outros. O autor, ao lado de Clarice Lispector e de João Cabral de Melo Neto, está entre os maiores escritores da terceira geração do Modernismo Brasileiro.

A obra rosiana pode ser lida e vivida sob os mais variados aspectos, que vão desde a sua refinada técnica narrativa, seu verdadeiro virtuosismo e ousadia no trato com a linguagem, até a aguda análise e percepção dos diversos conflitos psicológicos de suas personagens. Trata-se, sem dúvida, de um criador de rara e prodigiosa sensibilidade.

Com formação acadêmica na área da medicina e seguidor de carreira diplomática, Rosa era dotado de admirável erudição. Dominava o português, o alemão, o francês, o inglês, espanhol, italiano, o esperanto e o russo. Era capaz de ler em sueco, holandês, latim e grego e chegou a estudar a estrutura lingüística do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês e do dinamarquês. Para ele, o conhecimento de diversos idiomas era útil para dominar e trabalhar com o seu próprio.

Sua obra está voltada para o sertão brasileiro e para o homem simples do campo, bem como para a problemática social, espiritual e familiar das comunidades do interior do Brasil. Grande pesquisador de campo, Rosa fez várias viagens pelo sudeste e pelo centro-oeste, realizando inúmeras anotações, ouvindo estórias, casos e escrevendo tudo o que lhe era relevante, tanto do ponto de vista paisagístico como humano.

O escritor desenvolveu e demonstrou por toda a sua criação literária profunda preocupação espiritual. Homem supersticioso e místico, sempre respeitou as diversas facetas e manifestações da fé humana.

A galeria de personagens rosiana tem em "Primeiras Estórias" sua mais exemplar demonstração de variedade e, paradoxalmente, unidade, pois existem aspectos que os ligam, tais como: são seres em exceção, têm atitudes pouco comuns e surpreendentes, transgridem as regras sociais, possuem anormalidades físico-psiquicas etc. No entender de Paulo Rónai, nos protagonistas do escritor a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e atos mais simples se substanciam em símbolos.

É importante que se diga que nas "Primeiras Estórias", assim como nas novelas de "Sagarana", apesar da multiplicidade de contextos e de situações, há uma forte e indubitável unidade que permeia todos os textos. As narrativas do livro são, quase todas, marcadas por ações estranhas, anormais ou aloucadas, resvalando sempre numa interpretação tendente ao irreal, ao irracional, ao mágico, ao mitopoetico.

A galeria de Rosa é repleta de marginalizados e de criaturas excluídas, miseráveis ou débeis mentais, frutos do subdesenvolvimento e da incomunicabilidade que os permeia. Há, também, um grande número de crianças, dotadas de exacerbadas sensibilidades, quase sempre não compreendidas. Essa falta de compreensão e de comunicação por parte do meio não retira a coerência dos tipos que preenchem o livro, já que possuem uma vontade própria, bem como têm convicção de suas atitudes.

Nenhum comentário: