quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

A Mulher e Seu Amante

por Francisco Miguel Spínola
O conto "Felicidade Clandestina" está inserido no livro homônimo, publicado em 1971, que possui ao todo 25 narrativas, muitas das quais verdadeiras obras primas, tais como "Os Obedientes", "Os Desastres de Sofia" e "A Mensagem". De enredo muito simples o texto é repleto de sensações, angústias, revelações e de difíceis prazeres, assim como boa parte da obra de Clarice Lispector. Como é constante em suas narrativas, o ambiente externo pouca importância tem em comparação com o universo indecifrável do interior de suas personagens.

Possuindo um conteúdo notadamente autobiográfico, o conto relata uma passagem da infância de Clarice, ainda na cidade de Recife. Narrado em primeira pessoa, a protagonista-narradora conta sua relação com uma colega, cujo pai era dono de livraria. Descrita a colega como uma garota "gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados", a escritora logo informa ao leitor que essa moça não tinha nenhum interesse pelos livros que seu pai vendia ou mesmo que possuía em sua casa.

A narradora, que já era dotada de um profundo gosto pela leitura, descreve a "crueldade" com que era tratada pela colega, que invariavelmente lhe prometia livros emprestados que jamais chegava a entregar e que, pior ainda, nem sequer os lia. Até que, como que por acaso, a filha do livreiro informa que possui "As Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, o que despertou enorme desejo por parte da protagonista, que o descreve de maneira sensual na seguinte passagem: "era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o". Fica claro o papel da atividade literária como verdadeiro objeto de amor para a autora, no sentido mais intenso do termo, como razão de viver, como atividade missionária, doação e às vezes até como maldição.

A partir desse momento, a maldosa filha do livreiro demonstra todo o seu sadismo e tirania, fazendo com que a narradora lhe fizesse visitas diárias para obter o objeto de desejo que, invariavelmente, lhe era negado com o mesmo argumento de "estar o livro emprestado a outra menina", mas que no dia seguinte ele estaria disponível. Fica estabelecido uma rivalidade entre ambas, uma disputa pelo ser amado, objeto de real amor por parte de uma, e da simples posse interesseira da outra. Até que a esposa do livreiro interveio, já curiosa pelas constantes visitas da mesma menina a sua casa, e repreendeu sua filha, emprestando em seguida o livro "pelo tempo que quisesse". Em verdadeiro estado de êxtase, a narradora leva o livro para sua casa, onde saboreia em doses homeopáticas o delicioso processo de leitura, criando "as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Perece que eu já pressentia". O conto encerra-se, com forte conteúdo alegórico, na afirmação de que "não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante".

Vários contos do livro Felicidade Clandestina possuem traços autobiográficos inegáveis, como, por exemplo, "Restos do Carnaval", "Coma, Meu Filho" e "A Legião Estrangeira". Clarice escrevia de forma absolutamente pessoal e deslumbrantemente inquietante. Há uma inesgotável energia dentro da aparente apatia de suas criações; todos os personagens buscando subir a tona, afastar os escombros, tirar a terra, todos ansiosos por descobrir e interpretar o marasmo do quotidiano, um sentido para a existência. Todos em busca da revelação. Acusada de escrever textos demasiadamente herméticos, Clarice respondia "Eu, hermética? Hermética é a vida".
Francisco Miguel Spínola é advogado em São Paulo. fmcamara@ig.com.br

3 comentários:

Studio Arte Renascence disse...

Há alguns anos Aracy Balabanian apresentou pelos palcos brasileiros um espetáculo onde "recitava" alguns contos de Clarice Lispector, dentre eles, "Felicidade Clandestina". A gravadora Luzes da Cidade fez o registro sonoro da encenação e ofereceu ao público um CD maravlihoso. Aracy foi extremamente feliz com as interpretações feitas sobre os contos de Clarice, e seu trabalho constitui uma notável forma de introduzir o grande público na obra de nossa ficcionista maior.

Studio Arte Renascence disse...

Sobre Clarice já se falou:

"Era Clarice bulindo
mais fundo
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser
e retratar o homem."
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

"Clarice não delata, não conta, não narra e nem desenha – ela esburaca um túnel onde de repente repõe o objeto perseguido em sua essência inesperada."
LÚCIO CARDOSO

"A obra de Clarice recodifica e reinterpreta em prosa poética contemporânea as crenças cabalísticas judaicas. Para a Cabala, como para Clarice, a existência se explicita e se estrutura graças ao Mistério: É a certeza da existência do Mistério que permite à humanidade exercitar sua infinita liberdade (ZOHAR); A criação não é uma compreensão, é um novo mistério"
ESTER SCHWARTZ

Studio Arte Renascence disse...

Há uma obra de Walter Benjamin, publicada pela Ed. Rivages, da França, que ao ser lida, nos remete à paixão contida em "Felicidade Clandestina"; chama-se, em francês, "Je déballe ma bibliotèque" - algo como "Desempacotando minha biblioteca". Nesta obra, o grande ensaista alemão - um dos nomes mais importantes da crítica e da teoria literárias do século XX - fala sobre a emoção deslumbrante ao rever, depois de dois anos de separação, a sua coleção de livros e publicações. A cada desempacotamento, Benjamin, com os olhos marejados de felicidade, redescobria mundos totalmente maravilhosos, novos e instigantes. Somente os verdadeiros apaixonados pelas coisas essenciais do espírito pode compreender este amor louco.