por Miguel Pedro-Quadrio, do Diário de Notícias
A nova criação de Tiago Guedes não elege uma ópera concreta, experimentando antes a fusão músico-dramática própria da ópera. Aliás, como afirmou à imprensa, escolheu Dido e Eneias, de Henry Purcell (1659-1695), pela sua duração breve (cerca de uma hora), próxima do tempo médio dum espectáculo de dança.
O coreógrafo não foi insensível, porém, ao modo como o compositor inglês reinventou os sentimentos devastadores que aproximam e afastam Dido, rainha de Cartago, de Eneias, o foragido de Tróia que os deuses impelem para Itália, onde deve originar a linhagem dos fundadores de Roma. Sinal dessa influência é o exuberante investimento plástico feito apenas nos figurinos, já que não existe cenário, movimentando-se Maria Duarte e Tiago Guedes no palco despido do Negócio. Aleksandar Protich cortou fatos de dança modernos e coleantes (iguais para ambos) num tecido nobre, dourado e estampado (efeito amplificado pelos sapatos de tacão alto, também eles forrados). Este duplo contraste - espacial e imagético - fixa, por um lado, a rendilhada passionalidade barroca em que esta ópera se inscreve, insinuando ainda a desconstrução a que será sujeita.O jogo clarifica-se logo na abertura do espectáculo, quando, começando a ouvir-se a gravação de Dido e Eneias, dirigida por Andrew Parrott, os intérpretes - semelhantes a estátuas dramáticas - mimam, abrindo e fechando os lábios, as intervenções cantadas. A artificialidade quase absurda da situação, extremada pela apurada gestualidade minimal das mãos de ambos, inflecte a atenção do espectador para o modo como está a recepcionar uma intervenção estética (recriação inteligente e imaginativa - ainda que um tudo ou nada insistente e repetitiva - do princípio contemporâneo da ironia, de que Brecht foi pioneiro no Teatro e Merce Cunningham aplicou à Dança).
Este desafio à transdisciplinaridade, recorrente na obra de Tiago Guedes, é conservador, na medida em que radica ainda no trabalho sobre o movimento. Mas, abdicando dum código inovador - alargado, por exemplo, às artes visuais e ao distanciamento tecnológico -, não deixa de ser uma tocante - e explosivamente romântica - reafirmação poética da imprescindibilidade do intérprete nas artes performativas, enquanto corpo que exprime uma reflexão sobre as convenções moventes e ambíguas da pós-modernidade (ideia vincada na exploração contrastante entre os recursos expressivos da actriz e do bailarino). A última apresentação do espectáculo seria no último domingo, dia 5, às 21.30 (em Lisboa).
(in http://dn.sapo.pt/2007/08/05/artes/uma_opera_silenciosa.html)
Nenhum comentário:
Postar um comentário