O conto “Missa do Galo” foi publicado originariamente no livro “Páginas Recolhidas”, de 1899. Pertence, portanto, à fase de plenitude artística e literária do gênio criador.
Trata-se de uma belíssima amostra da arte de Machado, que teve a proeza de elevar o gênero conto, as narrativas curtas, aos mais altos patamares de criatividade literária. Estão ali, poderosamente condensados, algumas das características que imortalizaram o escritor, tais como a solidão, a infelicidade, a melancolia e a ironia que preenchem seus personagens. Machado, no entanto, elabora sua narrativa com a sutileza de um verdadeiro artesão, criando com leves toques o colorido infindável da natureza humana. Introduz, com cuidado e delicadeza, todos as suas inquietantes questões, propondo aos seus leitores um contato com a face mais dura e velada da realidade.
Em “Missa do Galo” o gesto não é esboçado, a palavra não é dita, o carinho não se exterioriza. A primeira sensação é a de que nada está acontecendo. Esta impressão não é de todo equivocada, pois objetivamente falando pouco realmente acontece, mas, por outro lado, há um turbilhão interior prestes a explodir, a extravasar, a sair... E que, por fim, não explode, não extravasa e não sai.O universo interno se chocando com o externo, em um misto de agonia e impotência. A calmaria da superfície é apenas e tão somente aparente.
O relato é feito em primeira pessoa, em que Nogueira tenta, de forma infrutífera, compreender os acontecimentos de uma certa noite de Natal. Logo no início, o leitor é presenteado com uma emblemática frase: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu com dezessete, ela trinta”. Nogueira é mais um personagem da galeria machadiana de narradores pouco confiáveis.
Nota-se que na introdução do relato o narrador-personagem abre mão das pretensas certezas e assume descaradamente o abismo desconhecido da alma humana, com uma simplicidade quase ingênua. Nogueira, que morava noutra cidade, estava hospedado em casa de um casal, Menezes e Conceição, no Rio de Janeiro, por motivos acadêmicos e, naquele final de ano, mesmo já em férias, resolve permanecer na capital para acompanhar a missa do galo na corte. Junto com o casal moravam também a mãe de Conceição e duas escravas.
Menezes, o marido, dormia uma vez por semana na casa de sua amante dizendo sempre ao sair que “ia ao teatro”. Esse hábito era conhecido por todos em sua casa e sua esposa, mesmo sofrendo inicialmente, terminou por se resignar e achar “que era muito direito”. Reveladora foi a descrição feita pelo narrador sobre Conceição: “era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos (...) tudo nela era atenuado e passivo (...) perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar”.
Naquela noite de Natal, a casa já dormia. Menezes estava fora de casa, em sua visita semanal, e Nogueira aguardava na sala o horário correto para sair, chamar o vizinho, com este, ir à Missa. Lia “Os três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, e estava encantado com as aventuras de D’Artagnan, despertou da leitura ao ouvir um pequeno rumor no corredor... Começou nesse instante o tímido diálogo entre Nogueira e Conceição, marcado por poucas atitudes e por muitas sensações e desejos que jamais foram realizados nem sequer esclarecidos. Uma atmosfera onírica de sensualidade se evidencia em diversas passagens da narrativa, tais como: “de vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedece-los”, “Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, sem tirar os grandes olhos de mim” e “não estando abotoadas, as mangas caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor”.
O clima de mistério e de cumplicidade entre os dois crescia a cada minuto e, para não quebrar o encantamento, Conceição reprimia o rapaz sempre que sua voz se elevava: “Mais baixo! Mamãe pode acordar”. O universo machadiano é repleto de imagens e de sensações efêmeras, em que a conflituosidade interior marca fortemente o comportamento dos personagens. Na arte do escritor as palavras nem sempre são ditas e as atitudes nem sempre são realizadas.
Os momentos de felicidade e de fantasia, que tanto contrastam com o marasmo e o tédio quotidianos, não passam para Machado de ilusões que são invariavelmente destruídas, como uma bolha de sabão no ar. O vizinho bate na janela e chama Nogueira para ir à Igreja, quebrando para sempre aquela pequena fração de deleite. Conceição sai pelo corredor, “com o mesmo balanço do corpo”.
Na manhã seguinte tudo volta ao normal, e as pessoas prosseguem inseridas em suas próprias convenções. Nogueira volta para o interior e, quando retorna, Menezes tinha morrido e Conceição já morava noutro lugar. Machado retrata habilmente o mundo das convenções irresistíveis e das revelações oprimidas, onde nem sempre é clara a distinção entre os modelos consagrados de comportamento e os quartos escuros da mente humana.
Francisco Miguel Spínola é advogado em São Paulo. fmcamara@ig.com.br
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